A língua Kaingang

A língua Kaingang pertence à família Jê (tronco Macro-Jê), falada por um dos povos indígenas mais numerosos no Brasil. Distribuídos por mais de três dezenas de Terras Indígenas espalhadas pelos 4 estados meridionais do Brasil, os Kaingang perfazem uma população total superior a 33 mil pessoas. Com esse contingente populacional, os Kaingang sozinhos respondem por cerca de 45% da soma de toda a população falante de línguas Jê (que compreende povos como os Xavante, os Xerente, os Kayapó ou Mẽbengokre, os Suyá, os Apãniekrá, os Krahô, os Apinayé e vários outros).

Em face das pressões da língua portuguesa, e outras compulsões integracionistas, a língua Kaingang perdeu um importante número de falantes nos últimos trinta anos. Estima-se que atualmente seja falada por uma parcela que representa de 50 a 60% de sua população total, ou seja, conta em torno de 15 a 18 mil falantes. Mesmo com esse grau de perda linguística, a língua Kaingang integra o seleto grupo das 5 ou 6 línguas indígenas brasileiras com mais de 15 mil falantes (em um universo de pouco mais de 170 línguas indígenas ainda vivas).

O Kaingang carrega, além disso, o ‘título’ de ser uma das línguas indígenas mais registradas no Brasil nos últimos 200 anos, ainda que muitos desses registros sejam de qualidade ou utilidade muito duvidosa (Cf. D’Angelis 2002a).

A importância maior dessa língua, porém, advém de outro fato: ela possui características fonológicas particularmente interessantes para a reflexão e o desenvolvimento das teorias linguísticas sobre esse componente das línguas naturais. Na sua maior parte, não são características exclusivas dessa língua, mas aspectos compartilhados com outras línguas Jê e Macro-Jê, como argumentou D’Angelis (1998). É, porém, o Kaingang a língua indígena brasileira que com frequência tem sido tomada como modelo para estudos inovadores no desenvolvimento da teoria fonológica, como se pode ver pelos seguintes trabalhos: Anderson (1974, 1976); D’Angelis (1994, 1995, 1996, 1998, 1999, 2002, 2011); Wetzels (1995, 2008a, 2008b); Fujimura (2010a, 2010b, 2010c).[1] Ressalte-se que essa listagem não esgota os trabalhos sobre a língua Kaingang, nem mesmo os trabalhos recentes. Ela destaca apenas aqueles trabalhos em que os fatos fonológicos da língua Kaingang são explorados na revisão e, principalmente, no desenvolvimento de teorias fonológicas.

A língua Kaingang apresenta, ademais, uma particularidade, efetivamente, com respeito às demais línguas indígenas no Brasil: sua comunidade de falantes mantém o primeiro e único site totalmente em língua indígena na web. Trata-se do portal  Kanhgág Jógo, criado em 2008 no bojo das ações de extensão do Projeto Web Indígena[2]. Não apenas o conteúdo, mas também a interface com os usuários é apresentada em língua indígena. Esse fato é sinal da existência de um grande contingente de jovens estudantes indígenas dessa etnia – muitos deles cursando universidades –  em contato com as novas tecnologias de informação e comunicação, e um envolvimento de uma parte significativa deles nessa (e em outras) ações de fortalecimento da língua indígena face as pressões da língua majoritária.

Nos processos de formação de professores indígenas, desenvolvidos com os Kaingang nas últimas duas décadas,[3]o estudo da própria língua e a reflexão metalinguística têm sido parte significativa dos currículos.


[1] Há, ainda, um grande número de autores que cita o Kaingang como exemplo, ou cita dados do Kaingang a partir de fontes secundárias, para corroborar teorias ou proposições teóricas. Por exemplo, veja-se Duanmu (2009), com sua CVX Theory.

[2] Uma parceria do Grupo de Pesquisas INDIOMAS, sediado na UNICAMP, e a ong KAMURI, contando com apoio da Pró-Reitoria de Extensão da UNICAMP, e do programa PROEXT-MEC (2009).

[3] Entre os Kaingang foram importantes o Curso de Formação de Professores Indígenas Bilíngues, sob responsabilidade da Unijuí, em meados da década de 1990, e o Projeto Vãfy – Magistério Específico de 2º Grau, sob responsabilidade da FUNAI, Unijuí e UPF, na primeira metade da década de 2000. Atualmente estão em andamento uma Licenciatura Indígena Kaingang, na Unochapecó (Chapecó, SC) e uma Licenciatura Cultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, na UFSC (Florianópolis, SC).